Ensino de gênero nas escolas: uma grande vitória pelo direito a educar

11 x 0: Em uma goleada contra a Escola com Mordaça! A luta das mulheres e educadores pressiona STF a votar por unanimidade o direito ao ensino de gênero criando jurisprudência nacional sobre o tema


Publicado em: 6 de maio de 2020

Brasil

Eliana Nunes*, de São Paulo, SP

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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Durante a quarentena muitos educadores se emocionaram ao assistirem Mucize e O Mistério da cela 7.   Estes dois filmes turcos tratam com delicadeza olhares sobre portadores de deficiência, a busca de igualdade, equidade e justiça. Mas também chama a atenção como cada película explora a relação docente com suas comunidades escolares, de forma comprometida, levando à reflexão de que a função da escola vai muito além da transmissão de conhecimentos, como pensam alguns.

Em Mucize, o professor Mahir se vê diante de um incomunicável rapaz do vilarejo, chamado Aziz (aparentemente portador de paralisia cerebral), colaborando para a mudança de seu destino, até então incompreendido e condenado ao isolamento social. Já a professora Mine (O Milagre na cela 7), luta pela permanência da pequena Ova na escola, mas percebe que, para conseguir o propósito, deveria ir mais fundo no drama vivido pela menina.

Não se defende aqui uma visão messiânica ou salvacionista da profissão. Sim, profissão: atividade para a qual um indivíduo se preparou. Trabalho que uma pessoa exerce para obter os recursos necessários à sua subsistência; ocupação, ofício. Trata-se aqui de educadores, profissionais da educação.

Ainda sobre a reação dos educadores aos filmes, a empatia ocorre estimulada pelas histórias e também pela forma como os professores são representados em cada uma das narrativas; ou seja, o reconhecimento da importância da profissão, o apoio e o respeito das comunidades locais.

Bem diferente da nossa realidade, em especial no Brasil. A imagem dos profissionais da educação está sob fogo cerrado seja pelo desmonte das carreiras, estrangulamento de salários, retirada de direitos como a aposentadoria e carreiras, seja pela criminalização daqueles que defendem a ciência e assumem esta posição.

Um episódio recente da tentativa de destruição da imagem dos professores foi a declaração do Governador de São Paulo, João Doria, que justificou não dar bonificação ao conjunto dos professores porque parte destes eram preguiçosos e tomadores de suco de laranja. Pífio argumento para negar investimentos na Educação. Doria busca, assim, deslegitimar as lutas contra o projeto privatizante dos serviços públicos que foi ainda mais escancarada na sua gestão.

Como diz Vitor Benvindo,  professor da Faculdade de Educação da UFBA, neste artigo do Esquerda Online , Jair Bolsonaro, que também odeia os professores, não quer uma educação que transforme, mas sim uma educação que mantenha as desigualdades sociais como naturais e que coloque o trabalhador no seu lugar: o de submissão.

As duas últimas décadas foram marcadas por centenas de marchas, greves e ocupações protagonizadas por docentes, pais e estudantes.  As bandeiras eram, entre outras, a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade, exigência de direitos sociais, condições de trabalho dos servidores, pelo passe livre escolar. Maior exemplo disso foram as ocupações de escolas em todo país e o Tsunami da Educação.

Reagindo a estas mobilizações foram sendo gestados os primeiros grupos conservadores, como os famigerados MBL (Movimento Brasil Livre), Escola sem partido, inspirados pelas ideias de Miguel Nagib, fundador deste último, o astrólogo Olavo de Carvalho e lideranças neopentecostais.

Estas ideias ganham força na esteira do ressurgimento de organizações de extrema direita em outros países em confronto aberto contra avanços em direção à igualdade de gênero, de raça e dos imigrantes. O capitalismo se utiliza das diferenças para melhor explorar e, em tempos de crise econômica, os poderosos se aproveitam para alimentar a divisão entre os trabalhadores e atacar seus avanços, haja vista o Brexit e os diversos planos de austeridade contra os direitos da classe trabalhadora europeia.

Grupos religiosos levantam faixas contra "ideologia" de gênero
Votação do Plano Municipal de Educação de São Paulo, em agosto de 2015. André Bueno / CMSP.

Eles pregam a negação da ciência. Defendem que a Terra é plana, fazem campanhas contra as vacinas e chegam ao absurdo de afirmar que o nazismo seria um movimento de esquerda. Aqui no Brasil, foram estes setores que divulgaram mentiras durante a campanha eleitoral. Termos como “mamadeira de piroca”, “kit gay” eram utilizados por Jair Bolsonaro entre outras tantas fake news. Para se ter ideia do tamanho do perigo 83,7% dos eleitores de Bolsonaro acreditavam que estas sandices eram verdadeiras, em pesquisa realizada pela IDEIA – Big Data/Avaaz em outubro de 2018.

Não é por acaso esta sanha sobre as escolas, com destaque para as públicas. Estes movimentos produziram projetos de leis municipais e estaduais em perseguição a alunos, trabalhadores da educação, familiares para que estes não abordem questões de raça, gênero e sexualidade. O objetivo é criminalizar aqueles e aquelas que nada mais fazem do que exercerem suas profissões ao divulgar ciência e criticidade. Sabemos todos que o grande medo da elite é que a classe explorada eleve a cultura e possa estar fortalecida na busca de exercer sua cidadania, ou seja, conquistar e fazer valer direitos e igualdade.

Há bastante elaboração sobre este tema que pode ser conferida aqui.

O dia 24 de abril deste ano ganha importância na história da educação brasileira.

O dia 24 de abril deste ano ganha importância na história da educação brasileira. A votação unânime dos 11 ministros do STF pela inconstitucionalidade da Lei municipal de Novo Gama (GO) que proibia a discussão de gênero em suas escolas endossou os argumentos da sociedade civil organizada em torno da defesa da liberdade. A lei do município goiano afrontava o direito à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a igualdade e o ensino laico.

A decisão no STF é fruto do intenso debate feito por educadores, defensores da escola pública e dos setores oprimidos diante do obscurantismo vivido desde o golpe ao governo Dilma Rousseff.

O Supremo também reiterou que cabe à União a exclusividade para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional.  Isso inviabiliza a tática do Movimento Escola sem Partido aprovar tais iniciativas em municípios ou estados. Este movimento se construiu sob esta pauta em todo país, elegendo inclusive parlamentares.

O STF devolve a liberdade de cátedra a quem tinha perdido. Lancemos mão desta vitória para intervir na realidade.

O tamanho desta vitória depende do que faremos dela

Educar no Brasil é sinônimo de rebeldia, porque sempre nos foram negadas as condições mínimas de ensino.

Não foi fácil trazer a História e Geografia de volta para o currículo no pós ditadura que as tinham esvaziado nos extintos Estudos Sociais. Filosofia e Sociologia foi uma outra luta encarniçada, bem como a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana. E mesmo assim, todas estas conquistas caem por terra com a Reforma do Ensino Médio, como já dito em artigos anteriores do Esquerda Online que podem ser conferidos aqui e aqui.

Apesar disso tudo, milhares de professores brasileiros, todos os dias, desafiam a lógica e transformam vidas. Não fosse isso, os números do analfabetismo e analfabetismo funcional seriam ainda mais assustadores. Para se ter uma ideia da dimensão das possíveis consequências desta negligência, o número de analfabetos funcionais são, no mínimo, alarmantes: apenas 22% dos brasileiros que chegaram à Universidade tem plena condição de compreender e se expressar de acordo com dados do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional), realizado pelo Instituto Paulo Montenegro em parceria com a ONG Ação Educativa, de 2016.

O que fazer? Por que fazer? Mãos à obra!

Esperamos que no pós-pandemia uma nova visão sobre a importância dos serviços públicos, ciência e educação tomem seu devido espaço na vida da humanidade.

Esta pauta deve ser abraçada pelos movimentos sociais, sindicais e estudantis.  Sabemos que a escola sozinha não é responsável por assumir uma postura ativa para reverter este quadro. A complexidade destes temas obriga que existam políticas públicas entrelaçadas entre os órgãos de defesa da criança e adolescentes, da Saúde e Educação. Mas isso não a exime de discutir e dar seus passos.

A votação do STF deve ser dedicada também a cada docente que foi perseguido, provocado, processado, demitido…

É necessária uma política consciente de inclusão destes temas que se referem à saúde nos currículos escolares, de acordo com cada fase de desenvolvimento de crianças e adolescentes. Combinado a isso, é fundamental a formação dos docentes em universidades públicas, para que as aulas se apoiem em conhecimento científico com metodologia pedagógica.

Portanto, cabe a nós darmos ampla visibilidade ao que foi reconquistado no STF e exigir, no quesito da sexualidade, a retomada na adoção dos Parâmetros Curriculares Nacionais (que seguem válidos!!!) para sustentação deste tema nas escolas.

Faz-se então urgente um chamado a um debate nacional, democrático, e a preparação de materiais para subsidiar as discussões numa parceria entre entidades e universidades públicas. Aliás, estas devem ser parceiras nesta empreitada, com criação e extensão de programas de educação sexual em todo o país.

A votação do STF deve ser dedicada também a cada docente que foi perseguido, provocado, processado, demitido, tendo suas vidas e saúde destroçadas. A luta não foi em vão. Eles estavam do lado certo da história.

 

* Conselheira Estadual da Apeoesp


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